21.2.08

Betriebsrat

Faz quase dois anos que recebi um contrato de trabalho da Merck. Fiquei radiante! Nas oito páginas escritas em alemao estava o meu salário chorudo e mais uma data de coisas que, pensei na altura, seria importante desvendar. Antes de o assinar, de preferência. Lembrei-me do Betriebsrat (sindicato) da Merck. Sem cerimónias, mandaram-me ir ter com o presidente do Betriebsrat, na altura: o Flavio Battisti. Um italiano sorridente dos seus sessentas, bom ar, cabelo todo branco e pele bronzeada. Num português muito correcto e quase sem acento, contou-me que sempre tinha trabalhado com muitos portugueses na Merck e por isso aprendera português. Interessou-se por mim, quem era e de onde vinha. Ao ler o contrato, deu-me a impressao que o sabia de cor e, a cada parágrafo, detinha-se para me contar quando e como tinham lutado por aquele direito, por aquela frase, por aquela vírgula. Lembro-me de na altura me ter maravilhado como o presidente do Betriebsrat de uma empresa com 8000 trabalhadores só em Darmstadt, por entre lutas sindicais e reunioes importantes, arranjava tempo para dar dois dedos de conversa e ler contratos de trabalho de pessoas anónimas.

Tive oportunidade de o ver uma vez “em accao”, há 1 ano. A Merck acabava de comprar a Serono e os ânimos andavam exaltados; havia inseguranca no ar. Numa reuniao geral de trabalhadores vi como aquele senhor baixinho dizia o que tinha a dizer com uma dignidade surpreendente, sem nunca descer de nível, e como era altamente respeitado por todos, estrangeiros e alemaes, trabalhadores e administradores. Também era o dia da sua despedida. Reformou-se com a promessa de continuar activo na ajuda aos trabalhadores. Naquele dia agradeci tê-lo conhecido e a sorte de ter estado naquela reuniao geral e de ter visto o que pode ser um sindicato no seu melhor.

Hoje voltei ao Betriebsrat com a minha declaracao de impostos. Antes tinha telefonado para lá apenas para perguntar onde poderia obter ajuda para o preenchimento da declaracao. Falei com o Jorge, um português de quem já tinha ouvido muito falar pelo sr Luís e pela sra Emília. Mandou-me logo ir lá com os papéis, que, das duas uma, ou o Battisti (sim! o próprio Battisti ocupa a sua reforma com declaracoes de impostos de quem precise!) me tratava disso ou o Jorge me mandava para uma organizacao nao-lucrativa onde ele próprio faz a declaracao de impostos. O Jorge comecou a trabalhar na Merck com 16 anos, agora deve ter à volta de 45. É mecânico mas está a tempo inteiro no Betriebsrat e diz que lhe faz falta o cheiro a óleo. Mas o trabalho, feito por conviccao, compensa e ainda vai de vez em quando beber um café com os colegas da oficina. Ainda se lembrava dos nomes de todos os estagiários portugueses com quem teve contacto e perguntou-me se eu nao era a portuguesa com namorado frances. Falámos das dificuldades de quando nao se fala a língua do país onde se vive, da adaptacao ou do choque cultural, da personalidade alema e da vida em geral. Disse-me que tem dificuldade em explicar à sua família em Portugal que nao faz o que faz por razoes políticas, mas sim por razoes cristas, por amizade e amor ao próximo.

O Betriebsrat e estas pessoas sao uma bolha de humanidade e de generosidade num mundo de cao, em que cada um está ocupado com a sua própria sobrevivência.

5 comentários:

andré disse...

gostei muito de ler este texto leo. parabéns :)

Anônimo disse...

Também gostei muito deste texto.
Lembrei-me do discurso do Salgado Zenha, no jantar de comemoração dos seus 70 anos. '(...)Pela estrada já ficaram muitos dos meus amigos, que morreram por vezes em circunstâncias difíceis, vítimas do apêgo aos seus ideais e do seu altruísmo. E morreram muitas vezas amargurados e ignorados. O futuro poderá esquecê-los, mas a verdade é que esses são o sal da terra. Sem eles a vida seria uma sucessão interminável de combates individuais, que tornaria a vida humana numa travessia sem beleza nem dignidade. A sua melhor mensagem foi a sua vida e é dessas vidas que não têm valor mediático que se forja no mais profundo do ser colectivo a sua consciência moral. Há valores sem os quais a vida se torna penosa. Queria fazer uma referência especial à amizade, à tolerância e à solidariedade.'
No início de cada ano lectivo, releio sempre este texto. Não sei se procuro força? consolo?

Anônimo disse...

Cachana has-de passar-me o discurso.
beijinhos,leonor

Anônimo disse...

Levo-te para os anos da Tia Ângela.

Bartolomeu disse...

Enfim
Países evoluídos
Em Portugal (terceiro mundo) saiu uma directiva de o ministério da educação que proíbe os professores de fazerem reuniões sindicais.