28.1.10

Amor de Perdicao

Eles manipulam-me, tenho a certeza. Amam-se e zangam-se e querem-se num momento agarrados no próximo longe um do outro. Em páginas separadas, se possível. Nao se querem ver mencionados na mesma frase. Têm ataques de ciúmes desta ou daquela... Já viste as figuras que faz... Fazem das tripas coracao para conquistar esta ou aquela hipótese. Ao ponto de só mostrarem o seu melhor ângulo. A um segundo olhar já nada do que me tinham dito bate certo. Malditos. Prendem-se de amores por uma conclusao. E, num arrufo, mostram-se vingativos no seu perfil mais maldoso, mais estéril, mais ridículo.

Amanha vou ter uma conversa muito séria com os meus resultados. Preciso de explicar-lhes que nao estou a escrever uma novela.

23.1.10

Piropos

que a minha ruga entre as duas sobrancelhas dá personalidade à expressao. Chamemos-lhe ruga séria. Mas que o melhor sao as rugas no canto dos olhos, porque sao rugas de rir. Rugas alegres. E que enquanto as rugas alegres forem mais importantes que a ruga séria, tudo bem.

No Staatstheater

Depois de passarmos o vestíbulo minimalista e clean, atravessámos a porta dos bastidores. Gente a andar de um lado para o outro, cada porta um submundo. Seguimo-la por corredores intermináveis e labirínticos. Ela andava depressa, eu queria ver o que havia atrás das portas. Queria espreitar para a sala onde vi roupa pendurada em cabides. Ela apercebeu-se da curiosidade e disse com indiferenca que salas dessas havia muitas ali. Num dos corredores, vimos instrumentos musicais, tambores e xilofones gigantes. Era a sala de ensaios da orquestra. E nós andávamos depressa demais.

No quarto andar fica a Damenschneiderei*, onde trabalham quase vinte modistas. Uma sala sobre o comprido, com mesas em fila junto dos janeloes e vista sobre a cidade. A parede é forrada de caixas em prateleiras com botoes, fechos, fitas, galoes e catálogos com amostras de tecido. Em cada caixa uma etiqueta escrita à mao em letra desenhada. Um par de trabalhos por acabar enrolados em manequins pretos de veludo. Máquinas de costura. Posters de mulheres na parede. A Marilyn Monroe de vestido branco a voar em Nova Iorque. Estamos sozinhas ali, é tarde e as costureiras já foram para casa. Lá fora está escuro, nao se ouve um som, estamos sozinhas no mundo. A melhor maneira de tomar decisoes. A costureira tem ar de menina, nao lhe consigo dizer a idade. Talvez quarenta. Muito calma, pequenina, elegante. Usa uma saia escura rodada e botinhas pelo tornozelo. Mostra-nos sedas, organzas e rendas. Rendas tao finas e suaves. Etéreas. Deixa-nos tempo para mexermos nas amostras. Fala pouco. Mede a altura da noiva. Para um vestido sao três vezes a altura. Ela nao sabe desenhar, gesticula as ideias num manequim de veludo preto. As mangas, que podem ser cortadas um pouco para dentro das costas, o bolero em seda a terminar pela altura da fita do vestido.

Imagino-me a trabalhar numa sala com janelas grandes e sem computadores. Conhecer o conteúdo das caixas na parede, os tecidos pelo toque e como se faz uma saia mais rodada atrás que à frente. Mover-me aqui como em casa. Pelos corredores labirínticos sem fim. Imagino-me a fazer um trabalho manual assim, do qual se vê o resultado. E o resultado é beleza.

*Oficina de modistas

15.1.10

Cor de sangue

Para mim, a melhor fotografia de sempre do Alfaiate. O texto, de peito aberto e a sangue frio. Um bocado formatado ele, meio envergonhado de ser criativo, credo que ainda me chamam apaneleirado (que palavra feia). Mas gosto muito do blog, das fotografias e das suas estórias. Além disso, e como diz a Laura, being hot excuses a lot of things.

6.1.10

Zeitgeist escrito numa estacao de comboios

Já nao me lembrava de como os invernos sao cinzentos em Portugal. Vamos embora e alimentamo-nos de imagens destiladas de um país quente, solarengo, charmoso, de esplanadas e copos de cerveja a refractar raios de sol. É assim ser emigrante. Estou cá mais dias que uns poucos e percebo porque saí e percebo que hei-de viver sempre com vontade de voltar e de ir-me embora. É longe, é pequeno, é claustrofóbico, todos se conhecem, todos tentam logo encontrar um conhecido em comum, que canseira, que promiscuidade, e que falta de liberdade. Estou a exagerar, claro. Os meus estao cá, sinto-me em casa, uma casa de mulheres como num Almodovar. Tao vivo, talvez menos dramático. Há a lareira de Monchite e a excitacao de estarmos juntos. Sabemos que todos os momentos sao preciosos. É por isso que gritamos, nao conseguimos conter a excitacao e gritamos. Há os grandes amigos que me salvam, as estórias mirambolantes ouvidas pela noite dentro, e cantar o Chico na autoestrada, esquecer do tempo, Zeitgeist escrito numa estacao de comboios, quem fez aquilo. E sentir em casa, e a roda de choro, "a gente está é pegando o jeito um do outro", descobrir quem fui (sou) numa caixa de vime, pôr o colar que o pai me deu e a mae nem tinha gostado e por isso eu também nao tinha gostado. É de ouro, com contas laranja, agora já gosto. Gosto muito. Ali à frente sempre muita roupa estendida, roupa feia, calcas de pijama, toalhas turcas com desenhos grandes. Quando chove, poe-lhes um plástico por cima e pronto. Tanta roupa em casas pequenas, será que lavam para fora. A cigana debruca-se na varanda a fumar, mexe na roupa a ver se está seca. Debruca-se com as mamas de fora da varanda. Camisola de lä parda, decote junto ao pescoco, cabelos muito compridos apanhados. E volta para dentro.