Faz quase dois anos que recebi um contrato de trabalho da Merck. Fiquei radiante! Nas oito páginas escritas em alemao estava o meu salário chorudo e mais uma data de coisas que, pensei na altura, seria importante desvendar. Antes de o assinar, de preferência. Lembrei-me do Betriebsrat (sindicato) da Merck. Sem cerimónias, mandaram-me ir ter com o presidente do Betriebsrat, na altura: o Flavio Battisti. Um italiano sorridente dos seus sessentas, bom ar, cabelo todo branco e pele bronzeada. Num português muito correcto e quase sem acento, contou-me que sempre tinha trabalhado com muitos portugueses na Merck e por isso aprendera português. Interessou-se por mim, quem era e de onde vinha. Ao ler o contrato, deu-me a impressao que o sabia de cor e, a cada parágrafo, detinha-se para me contar quando e como tinham lutado por aquele direito, por aquela frase, por aquela vírgula. Lembro-me de na altura me ter maravilhado como o presidente do Betriebsrat de uma empresa com 8000 trabalhadores só em Darmstadt, por entre lutas sindicais e reunioes importantes, arranjava tempo para dar dois dedos de conversa e ler contratos de trabalho de pessoas anónimas.
Tive oportunidade de o ver uma vez “em accao”, há 1 ano. A Merck acabava de comprar a Serono e os ânimos andavam exaltados; havia inseguranca no ar. Numa reuniao geral de trabalhadores vi como aquele senhor baixinho dizia o que tinha a dizer com uma dignidade surpreendente, sem nunca descer de nível, e como era altamente respeitado por todos, estrangeiros e alemaes, trabalhadores e administradores. Também era o dia da sua despedida. Reformou-se com a promessa de continuar activo na ajuda aos trabalhadores. Naquele dia agradeci tê-lo conhecido e a sorte de ter estado naquela reuniao geral e de ter visto o que pode ser um sindicato no seu melhor.
Hoje voltei ao Betriebsrat com a minha declaracao de impostos. Antes tinha telefonado para lá apenas para perguntar onde poderia obter ajuda para o preenchimento da declaracao. Falei com o Jorge, um português de quem já tinha ouvido muito falar pelo sr Luís e pela sra Emília. Mandou-me logo ir lá com os papéis, que, das duas uma, ou o Battisti (sim! o próprio Battisti ocupa a sua reforma com declaracoes de impostos de quem precise!) me tratava disso ou o Jorge me mandava para uma organizacao nao-lucrativa onde ele próprio faz a declaracao de impostos. O Jorge comecou a trabalhar na Merck com 16 anos, agora deve ter à volta de 45. É mecânico mas está a tempo inteiro no Betriebsrat e diz que lhe faz falta o cheiro a óleo. Mas o trabalho, feito por conviccao, compensa e ainda vai de vez em quando beber um café com os colegas da oficina. Ainda se lembrava dos nomes de todos os estagiários portugueses com quem teve contacto e perguntou-me se eu nao era a portuguesa com namorado frances. Falámos das dificuldades de quando nao se fala a língua do país onde se vive, da adaptacao ou do choque cultural, da personalidade alema e da vida em geral. Disse-me que tem dificuldade em explicar à sua família em Portugal que nao faz o que faz por razoes políticas, mas sim por razoes cristas, por amizade e amor ao próximo.
O Betriebsrat e estas pessoas sao uma bolha de humanidade e de generosidade num mundo de cao, em que cada um está ocupado com a sua própria sobrevivência.